Introdução:
Palestras ou aulas não presenciais carregavam sua relevância no espaço acadêmico, porém é a situação atual que impulsiona essa prática a um outro patamar. Estamos vivendo, mesmo que alguns tentem subverter essa organização, um momento de confinamento que tem como objetivo conter a expansão do novo coronavírus SARS-CoV-2, portanto uma boa parte das práticas do nosso cotidiano estão dirigidas para dentro de nossas casas.
Como disse, as aulas e palestras virtuais aconteciam antes, mas a situação agora é diferente, a possibilidade de transmitir sua imagem de outro lugar que não sua própria casa é quase inacessível, sendo assim, o cenário que estabelece o espaço para a relação entre sujeitos durante as aulas deixa de ser a sala da instituição, onde as imagens de sujeitos se relacionam diretamente, e passa a ser um mosaico de molduras que enquadram a imagem de uma webcam. Assim, temos uma faceta do espaço privado de cada um dos sujeitos que estão ali presentes, um enquadramento único da casa da pessoa.
Devemos atentar nosso olhar para essa moldura do privado, sua importância nesse contexto atual equivale ao que está sendo, supostamente, exposto pelos sujeitos durante o encontro. Durante esse estudo vamos nos intrometer nas estantes e bibliotecas, ditas, particulares que são expostas, acidentalmente ou não, na moldura individual apresentada no espaço virtual. Acredito vivamente que essas bibliotecas não são de uso único e exclusivo e a relevância delas nas emolduradas nos espaços virtuais de discussão, tanto acadêmicas quanto educacionais, podem revelar muito sobre o imaginário simbólico que é condição e efeito das relações inter-humanas.
A Moldura
Não é incomum para aqueles que vivem em ambientes virtuais, de aula acadêmicas ou de palestra, encontrar professores/palestrantes, principalmente esses, e até alunos com sua moldura virtual (a moldura é imagem enquadrada e reproduzida pela captura da webcam) com uma organização muito específica ao fundo. Uma estante com livros, uma pequena biblioteca privada.
A Biblioteca Como Pulsão de Autoconservação
A Biblioteca não se encontra na moldura por um acaso, mas então o que podemos encontrar na pulsão do sujeito em apresentar aquele conjunto de obras em um segundo plano, mesmo que nunca se referindo àquele cenário. Para melhor elaborarmos as relações que perpassam pelas bibliotecas devemos dividir esse momento duas abordagens - 1° posição coloquial do termo narcisismo e sua relação com os outros - 2° estantes como complemento libidinal da pulsão de autoconservação e o ambiente acadêmico.
A primeira abordagem é o posicionamento que desabrocha do conhecimento popular coloquial do conceito de narcisismo, que é comumente associado a sujeitos que se preocupam demasiadamente com sua própria imagem no mundo virtual que os cercam, logo todas suas ações sempre estão permeadas com detalhes que contribuem para um inchaço de seu self. Poderíamos aqui descartar esse conhecimento do espontâneo, justamente por não seguir os padrões de historicidade teórica do termo científico, mas se assim fizéssemos deixariamos de perceber uma pequena parcela de nossa - nossa, pois a estrutura de ficção que sustenta realidade é sempre compartilhada com os outros e o Outro, com as especificidades do Sócio-Histórico-Cultural em que esses outros estão imersos - realidade, pois justamente por existir uma aceitação e afirmação significativa dessas ideias por grande parte dos portadores da linguagem, o termo, mesmo que deslocado de sua origem teórica, ganha significado e justifica, até certo ponto, atitudes e traduz ações.
A segunda abordagem possível é através de um resgate da construção teórica Freudiana, onde “O narcisismo nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva.” (FREUD, 2010).
Eclode a pergunta: E a estante de livros? Qual o papel dessa biblioteca?
Ela é a constituição física do instinto (não cabe aqui desenvolver as especificidades teóricas do termo pulsão, mas para Freud os instintos nos humanos são muito mais complexos do que nos animais, isso pois o constante conflito entre o inconsciente, superego, ego e cultura faz com que o humano tenha pulsões ao invés de apenas os instintos "naturais": quando estamos com sede temos vontade de tomar coca-cola e não água) de autopreservação do professor ou do palestrante diante da antropofagia do olhar externo de seus alunos ou plateia presente no encontro virtual, pois a construção daquela realidade ficcional serve como um alicerce que sustenta e justifica sua posição hierárquica dele diante dos outros. Portanto as atitudes narcísicas individuais, nesse ambiente atípico (atípico, pois não existe uma instituição simbólica por trás da sua imagem de sujeito que alimenta suficientemente seu instinto de autopreservação, sendo assim, parece necessário elaborar alguma narrativa que organize a hierarquia institucional e amenize sua tensão psíquica, situação que seria diferente, caso a aula fosse ministrada dentro de uma universidade ou centro de pesquisa, já que toda estrutura física dá o apoio e justificativa necessária para elaboração sintética de sua imagem.
Portanto percebemos nesta segunda reflexão, uma forte pressão do aparelho psíquico para elaborar a imagem que a webcam nos apresenta, e difere da primeira, onde o importante seria uma pura exaltação do ego pos sí só, pois a relação com a estante se torna muito mais complexa: extrapolando as questões frívolas do cotidiano, a estante é expressão física do complemento libidinal da pulsão de autopreservação. Devemos encarar a autopreservação não só como um mero reflexo das necessidades fisiológicas, mas também de tudo o que emana dessas necessidades quando a cultura a permeia. A estante de livros é ali apresentada de forma semelhante a quando ingerimos algum líquido ou alimento para fazer a manutenção de nosso corpo, a única diferença é que, quando estamos imersos em uma realidade simbólica, as nossas demandas corpóreas extrapolam apenas a manutenção fisiológica do corpo, agora, a sede e a necessidade de se hidratar são saciadas através da coca-cola ou de um suco detox adoçado com stevia, algo além da sede na sede. A estante protege a imagem do sujeito diante de seus pares, dá sustância à sua posição no grupo, oferece abrigo dos perigos oferecidos diante do espaço em que ele se encontra, justifica sua fala no grupo e, assim, ele pode fingir agir ser um macho alfa, o mestre, e os outros também podem fingir que algo os diferem dele. “é a ordem simbólica que é constituinte para o sujeito, demonstrando-Ihes numa história a determinação fundamental que o sujeito recebe do percurso de um significante.”(LACAN, 1998)
No entanto acredito profundamente que essas reflexões não abraçam todos os detalhes ali expostos e a moldura em sua totalidade, devemos nos debruçar em algumas questões: Quem leu ou lê os livros? Essas estantes são de uso privado e exclusivo?
A Biblioteca Compartilhada: O Grande Outro, O Único Leitor.
Retomemos o exemplo simples e mesmo assim extremamente ilustrativo que Zizek nós apresenta em sua obra “Como Ler Lacan”, onde encontramos uma situação típica em que em um grupo fechado de conhecidos mora um segredo sórdido, porém todos que se encontram no determinado ciclo de conhecidos sabem o segredo e agem como se não soubessem um para os outros (apenas podendo agir dessa forma enquanto o segredo continua mantendo as suas especificidades de segredo, ou seja, não revelado), mas quando alguém deixa escapar os detalhes todos se sentem extremamente constrangidos. O exemplo descrito tem como utilidade na obra descrever a relação inter-sujeito no campo simbólico do inconsciente conforme as obras de Lacan, chegando à relação dos sujeitos com o Grande Outro. Não seriam as estantes de livros apresentadas de fundo nas molduras virtuais mais um outro exemplo semelhante ao segredo entre amigos?
Devemos nos intrometer na concepção das bibliotecas ditas individuais, chegamos ao ponto onde é necessário reconhecer que os livros ali estocados permanecem em um constante uso coletivo: semelhante à “carta roubada” que Lacan traz em seus seminários, os livros ali têm especificidades parecidas, a leitura dos livros ali na estante sempre é realizada, o Grande Outro se encarrega de realizá-la enquanto o responsável físico da estante está se preocupando com suas intimidades e, mesmo assim, podendo ao final usufruir dessa leitura através do Outro, pois não interessa se a pessoa que comprou os livros os leu de fato, assim como ir ao cinema:
“Portanto, observem-no duas vezes antes de dizerem que são as emoções de vocês que estão em jogo nessa purificação. Elas estão em jogo quando, no final, não apenas elas, mas muitas outras devem ser, por meio de algum artifício, apaziguadas. Mas nem por isso elas são colocadas diretamente em jogo. Sem dúvida alguma elas estão em jogo, e vocês ali se encontram em estado de matéria disponível - mas, por outro lado, de matéria totalmente indiferente. Quando vocês vão ao teatro à noite, vocês pensam em seus pequenos afazeres, na caneta que perderam durante o dia, no cheque que terão que assinar no dia seguinte - portanto, não confiamos tanto em vocês. toma-se conta da emoção de vocês numa saudável disposição da cena. o Coro se encarrega disso. O comentário emocional é realizado. Essa é a maior chance de sobrevivência da tragédia antiga - ele é realizado. Ele é tolo justo o necessário, ele tampouco deixa de ser firme, ele é mais humano. Vocês estão, portanto, libertos de toda preocupação - mesmo que não sintam nada, o Coro terá sentido por vocês.” (LACAN, 2008)
A relação que estabelecemos com as bibliotecas é idêntica à situação descrita acima. Portanto, não é relevante até certo ponto se os livros são de fato lidos ou não, o campo simbólico e inter-pessoal é capaz de formular a mensagem virtual que estabelece a realidade ficcional, ou seja, o livro foi lido e usufruído mesmo sem ser fisicamente lido, a materialidade da situação só interessa até o momento de colocar o livro na estante, o Outro se encarrega do resto. “o Outro pode também acreditar e saber por mim.” (ŽIŽEK, 2010)
Voltemos às molduras, sua aparição não é acidental, a biblioteca no fundo da imagem produzida da webcam do professor ou do palestrante carrega um valor simbólico extremamente relevante para o Outro, dada a frequência com que aparece, como se fosse um recurso básico como microfone ou até mesmo a própria webcam, parece existir uma demanda simbólica que sustente a posição virtual que o sujeito carrega no espaço simbólico em que ele está, mas a única forma dessa trama se manter coesa é com o campo simbólico: o Outro, reconhecendo imagem virtual do outro, o sujeito. Existe uma relação constante entre os outros e o Outro, relação que jamais é posta de lado, pois é ela que configura o inconsciente que suporta nossa realidade virtual.
A Biblioteca se transforma dicotomicamente: em um momento ela é apresentada como a validação simbólica da posição social e do conhecimento acadêmico do sujeito que a apresenta durante as conferências virtuais, pois o Grande Outro, leu e sentiu o peso histórico e cultural das obras e, sendo assim, o outro pode usufruir dos benefícios dessa leitura, no caso, o destaque social e acadêmico; mas diria que é a segunda faceta que apresenta a relação mais interessante, onde a estante é a manifestação material do segredo sórdido em um grupo de conhecidos, o segredo revelado que a biblioteca nos esconde e nos apresenta é a não leitura de seus livros, pois muito provavelmente - mas no fundo é indiferente - o professor ou o palestrante não fez as leituras dos livros ali apresentados, e todos nós sabemos disso e ele sabe que sabemos, mas mesmo assim não abrimos os detalhes um para os outros. A ficção virtual se configura através de nossos segredos, possibilita agir como se não soubéssemos, podendo validar como se não soubéssemos, dá valor simbólico como se não soubéssemos, sendo assim, quando uma figura se apresenta com a biblioteca atrás dela virtualmente cedemos diante do Outro nosso valor simbólico para que a realidade se sustente e tenha valor tanto para quem profere o discurso acadêmico quanto para quem é ouvinte do discurso acadêmico. “Ele é tolo justo o necessário, ele tampouco deixa de ser firme, ele é mais humano.
Vocês estão, portanto, libertos de toda preocupação - mesmo que não sintam nada, o Coro terá sentido por vocês.” (LACAN, 2008)
O segredo deve ser mantido, os detalhes devem ser ocultados, tanto os ouvintes quanto o palestrante não podem revelar o segredo que dá peso simbólico para encontro virtual, caso contrário, o Outro saberia dessa grande mentira e logo entraremos em uma situação, inicialmente, constrangedora, mas que vai além das margens do constrangimento e atingem o cerne da realidade dos outros, desfigurando e desmando o véu que encobre os títulos e coerências sócias, a confiança do aprendiz no mestre é destruída, pois são esses segredos que ocultamos do Grande Outro que permitem que possamos agir dentro da ficção inter-pessoal.
A metáfora do real: Continuamos Nos Masturbando
A situação atual, pandemia e quarentena, nos oferece episódios que escancaram nossa realidade, parece que o virtual nunca foi tão real.
Durante esse momento um vídeo “viralizou” nas mídias sócias: em um desses encontros virtuais, onde um grupo de trabalhos discute suas ideias e distribuem suas funções para ser realizadas durante esse momento de home office, um dos participantes se descuida e não percebe que sua câmera continua ligada para os outros participantes, a situação se complica, pois o participante que se descuidou começa a realizar um ato íntimo de auto-prazer, ele se masturba, e é evidente que todos conseguem observar através da imagem da webcam o momento em que o ato tem início. O choque e espanto é generalizado.
O episódio apresentado acima é a síntese pitoresca do estudo aqui descrito, todos que ali estão presentes agem como se não soubessem da existência do ato em si para a boa manutenção da imagem virtual dos outros, eles fingem que essa parcela humana dos outros não existe. A questão se complica quando ela é escancarada, o choque acontece mesmo que todos ali já saibam da sua existência, possivelmente por por experiência própria, mas essa parcela do real não foi revelada como possível alternativa para o campo simbólico, o Outro, todos se constrangem, pois o Outro toma ciência do ato e do segredo do grupo. O constrangimento é pura identificação. Agora que o segredo não é mais velado, não se pode agir como se ele não existisse.
O episódio remonta com clareza, quase que de forma didática, à estrutura do real com a qual lidamos constantemente, jamais entramos em contato com o sujeito em si, mas com uma imagem virtual do outro.
Não importa se lemos os livros ou não, a estante se encarrega de se emocionar com eles, preocupemo-nos com a masturbação.
Referências bibliográficas
FREUD, S. (2010). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
ŽIŽEK, S. (2010). Como ler Lacan. Rio de Janeira, RJ: Jorge Zahar Editor Ltda.
LACAN, J. (2008). Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-160. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor Ltda.
LACAN, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor Ltda
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